Os barões do café

 


Naquela época, um exportador de café tinha que vir de uma família de cafeicultores. Não bastava ter uma ou outra faculdade e o estágio certo em certas instituições financeiras para se obter acesso à locação de armazéns na zona do porto. Não! A coisa era bem diferente naquela época.

Os barões do café ergueram o império paulistano, moldando a cidade com suas mansões, ferrovias e portos. Uma tradição forjada em terras novas; velhos vícios em terra nova. A imagem de uma Europa em vias de decadência, encontrava eco em um país recém-nascido. O Espírito re fazendo o espírito de Pindorama.

Para mostrar sua tradição e seu poder, ainda existem sobrenomes de família chamados de quatrocentões, em referência aos quatro séculos de poder e riqueza. São nomes longos, que procuram identificar até a quinta geração, e assim vão-se somando uns aos outros. Os Silva eram evitados, os Costa, raros. A proximidade com a natureza era um anátema para aqueles que se viam como descendentes da nobreza (assim se viam).

Então, veja só, não era só uma questão de viver em riqueza e luxo, mas de tradição de família, entre suseranos e vassalos há mais de 400 anos. E justamente ele perdeu tudo... Não tinha nem prô pãozinho.

Mas a linha engendrada pelo enrolamento regular de uma reta sobre um cilindro, sempre encontra o ponto de origem sem nunca mais voltar. E ele descobriu a fórmula. Uma fórmula que lhe daria de novo a majestade de quem já foi rei e nem nunca a perdeu nem nunca a perderá. É uma questão de ser, não de ter. Foi ali, sentado na beira da praia, na mureta do quebra-mar, entre carros passando, gente aflita com o infindável corre-corre, daquela luta pela sobrevivência, como as gaivotas brigando pelo lixo que vem do vômito dos marinheiros, marionetes sem nem mesmo saber quem mexe os cordões. Foi bem ali que ele viu a solução antes inimaginável, inatingível.

Foi uma frase que ele ouviu, do meio das vozes que gritavam dentro de si mesmo. Todo mundo já passou por isso! É como se houvessem várias pessoas falando ao seu ouvido, dentro da sua cabeça. E como falam! Falam alto. Como nos desenhos animados antigos, quando de um lado fala o anjinho e do outro o diabinho. São essa vozes que ele ouvia enquanto olhava para o mar, naquele estado de torpor, de "O mundo caiu" pela voz de Maysa. Enquanto ele sofria as vozes se divertiam e falava, e falavam, e falavam, até que uma delas disse a frase que mudaria, de novo, a sua vida.

A descoberta era tão absurda que ele duvidava de sua própria sanidade. Quem acreditaria que um homem que havia perdido tudo, que havia visto ruir um império familiar de quatro séculos, encontraria a salvação em uma ideia tão simples? A voz interior o tentava, mas a razão o alertava: a loucura era um abismo tentador.

Se parasse para pensar, não acreditaria. Ninguém acreditaria se contasse. Era muito simples. Qualquer um pensaria que realmente tinha ficado louco, afinal de contas passar por aquilo, perder tudo, perder quatrocentos anos de tradição, de luxo e de opulência... Tinha ficado louco mesmo! Então ele não contou. Não que ele não quisesse, ele até queria contar, mas não podia porque ninguém acreditaria. Era segredo porque ninguém quer acreditar, não porque eu não possa contar.

Presos aos cordões, os marionetes não querem nada que não seja oferecido pelas mão que mexem os cordões. Marionetados por fios invisíveis, conduzidos por uma mão que molda seus destinos. A folha A4, metaforizando, um altar da mediocridade, exige sacrifícios de originalidade. A criatividade, aprisionada em padrões rígidos, se atrofia, e a alma humana, anulada pela mecanização da existência, anseia por liberdade.

Parodiando RATZINGER “é o medíocre pragmatismo da vida cotidiana..., no qual, aparentemente, tudo procede com normalidade, mas na verdade a fé vai se desgastando e degenerando em mesquinhez”[1].

Nasce o conflito. Lógico! Ele também frequentou boas escolas. Como um descendente de barão, ele tinha que ter frequentado boas escolas, uma faculdade também tradicional, quatrocentona como seu sobrenome. Ele também tinha sido adestrado com quantidade imensa de instrução cognitiva a ponto de paralisar o seu cérebro, como os animais de circo, que ao ouvir o assobio, equilibram a bola no focinho, ou cumprimentam o público, em troca de um pedaço de salsicha.

Ironia do destino, dizemos, naquela situação de "fundo do poço", situação na qual não tinha sido adestrado, todos os conceitos pré-estabelecidos não serviam para nada. Ele teve que pensar, teve que ouvir a voz de dentro, de dentro do dentro. Bastou uma frase, a mais simples e mais óbvia, e mais absurda também, porque nega... Não, não nega! Simplesmente não considera as instruções escolásticas. Não foi considerada nas instruções do adestrador, daquele que segura os cordões, e o boneco, assim, tomou vida. Não tenho certeza se Gepetto ficou contente desta vez.

 

"Do Caos à Criação"

Esquecido em meio aos escombros do passado,
Onde a nobreza ruíra e o sonho se perdia,

Ele,
um náufrago em terra, algo então inventou.
Uma semente plantada em fértil ideia.

Do caos nasceu a ordem, da dor, a criação.
Um império construído sobre a própria ruína,

Um renascimento,
uma nova nação
Erguida das cinzas,
da miséria e da ruína.

Incógnito, arquiteto de seu destino,
Teceu uma trama onde poucos o viam.

Semeou a esperança,
um novo caminho,
E,
em segredo, seu nome perpetuava.

Nas prateleiras, seus produtos, um legado,
Fruto de um gênio que a vida consagrara.

E assim,
no anonimato, consagrado,
Seu nome,
em cada venda, se propagara.

 

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[1] RATZINGER, J. Situação atual da fé e da teologia. Conferência pronunciada no Encontro de Presidentes de Comissões Episcopais da América Latina para a doutrina da fé, celebrado em Guadalajara, México, 1996. Publicado em L’Osservatore Romano, em 1º de novembro de 1996. 

 

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